sexta-feira, 6 de julho de 2012

Na ditadura e na democracia


Desde a sua fundação, e durante os 40 anos seguintes, a federação das indústrias do Pará teve um único presidente: Gabriel Hermes Filho. Façanha maior do que a de Theobaldo de Nigris na Fiesp paulista. Hermes foi senador por muitos anos, deputado federal e dirigente de órgãos públicos. Um homem sagaz e com um senso agudo da oportunidade. Estava sempre ao lado do governo que estivesse no poder.

Mesmo com essas credenciais, já encanecido, o senador Hermes anunciou que comandaria o maior protesto contra a construção da hidrelétrica de Tucuruí, que era a maior obra em andamento no Brasil naquele inicio da década de 1980.

O dirigente das indústrias paraenses era inteiramente a favor da usina, por pensar assim e por ser do partido do governo. O problema é que a barragem mantinha bloqueado o rio Tocantins. Às vésperas de ser inaugurada, ninguém levava a sério a exigência feita desde 1934, pelo Código de Águas, a quem fechasse um rio: restabelecer-lhe a navegabilidade.

Tratava-se, no caso, do 25º maior rio do mundo. Depois de percorrer quase dois mil quilômetros, o Tocantins estava represado a menos de 400 quilômetros da sua foz. Precisava de um sistema de transposição para continuar a ser um rio navegável — e legalizado.

Para isso, precisava dispor de duas eclusas, de um canal de concreto entre elas com cinco quilômetros de extensão e obras de desobstrução no seu leito, rio acima. Obra para mais de um bilhão de reais, valor atualizado. A maior eclusa do mundo.

A empresa construtora da usina, a estatal Eletronorte, se livrou logo do que para ela era um abacaxi. Queria se dedicar apenas à geração de energia. O resto não lhe interessava (mesmo que "o resto" fosse uma bacia hidrográfica ocupando 8% do território brasileiro).

Em protesto, o senador Hermes iria se colocar abaixo de uma das comportas da represa e lá se imolaria quando elas fossem abertas para dar passagem às águas. No ano recorde de vazão, 1980, o Tocantins chegou a despejar naquele ponto 68,5 milhões de litros de água por segundo.

Ao lado do senador no momento em que ele anunciou o ato heroico, ofereci-lhe um guarda-chuva para enfrentar o desafio. Todos riram, inclusive o candidato a maior surfista de todos os tempos. Tratava-se, evidentemente, de pura bazófia. O senador não molhou o seu corpo, a barragem inundou três mil quilômetros quadrados a montante (criando o 2º maior lago artificial do país) e as eclusas só foram parcialmente concluídas mais de duas décadas depois, no final do governo Lula.

A Eletronorte fez o que quis durante a construção de Tucuruí, a quarta maior usina de energia do mundo. A legislação de proteção ambiental só começou a ser formada seis anos depois que o empreiteiro contratado instalou o seu canteiro de obras. Quando a primeira das 21 turbinas entrou em operação, em 1984, nada mais havia a fazer para impedir o efeito dos erros que foram cometidos e dos absurdos que se incorporaram ao projeto.

Não há mais dúvida que a corrupção influiu decisivamente na multiplicação dos custos da obra, ou que maior atenção e alguns cuidados teriam reduzido o impacto negativo da enorme usina. Mas Tucuruí está em pleno funcionamento há mais de uma década e meia. Responde por 7% de toda geração de energia consumida no Brasil, abaixo apenas de Itaipu. Se a corrupção consumiu 2 bilhões de dólares ou se até hoje os efeitos negativos se fazem sentir, isso já é coisa do passado, história.

O perfil dessa usina é típico de um regime ditatorial. Com todos os poderes concentrados nas suas mãos, Brasília fez o que quis desde o começo das obras, em 1975, até a inauguração festiva da hidrelétrica, em 1984, meses antes de terminar o último governo militar, o do general João Figueiredo. As outras grandes usinas que se seguiram estão sendo construídas em uma democracia, a mais duradoura de toda a história republicana.

Todas as pressões, mobilizações e ataques aos três grandes projetos em execução se explicam pelas características da democracia. Não surpreende que os canteiros de Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, e de Belo Monte, no Xingu, no Pará, sejam palco de conflitos jamais registrados no âmbito de Tucuruí.

Quem acompanhou mais de perto as obras no Tocantins deve ter contemplado com certa perplexidade a imagem da mais recente investida a Belo Monte, dos índios e seus aliados, os "guerreiros ambientalistas", conforme eles se denominam.

Eles conseguiram abrir um canal no meio da barragem de terra, com algumas centenas de metros de extensão, já atravessada sobre o leito do Xingu. A intenção seria a de libertar o rio, apenas um pouco menos extenso do que o Tocantins, do aprisionamento que a engenharia humana lhe impôs.

O dano que os manifestantes causaram à ensecadeira é quase nenhum, embora, sob um governo forte, como o que viabilizou Tucuruí, nem isso teriam conseguido. Os muitos órgãos de informação teriam antecipado a iniciativa e os braços repressivos do regime, logo acionados, teriam acabado com o ato de protesto, se ele chegasse a existir, à base de violência.

Na democracia em que estamos, os manifestantes fizeram seu dreno na estrutura, que é a espinha dorsal da monumental obra de engenharia exigida por uma represa desse porte. Mas logo as enormes máquinas reporão tudo na condição original e a obra prosseguirá, sofrendo apenas uma ranhura no seu cronograma físico e financeiro. O simbolismo terá sido bem mais vivo e efetivo do que o do senador Gabriel Hermes Filho, no ocaso da ditadura.

Esse é o lado da democracia que favorece a cidadania. Mas ele tem outra face: exige conhecimento e responsabilidade das lideranças. Quando o ato deixa de ter o objetivo político evidente, na sangria do bloqueio de um rio belo e admirável como o Xingu, para se tornar quebra-quebra, por mais nobre que seja sua inspiração, o conteúdo político da manifestação é erodido, rui, desaparece.

Com isso se infiltra o risco de o ato descambar para o mero episódio policial, com danos a reparar e autorias a imputar. Ainda mais quando nem sempre os que executam a concepção sabem o que estão fazendo. E os que sabem nem sempre digam o que sabem. Na democracia, ganhar de qualquer maneira não é jogo válido, sejam quais forem os jogadores.
Texto de Lúcio Flávio Pinto

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