quinta-feira, 12 de julho de 2012

A montanha e o rato

     Pela primeira vez índios e engenheiros fumaram o cachimbo da paz no Xingu. Depois de 23 anos de escaramuças em torno da construção da hidrelétrica de Belo Monte, eles firmaram um acordo, nesta quarta-feira, 11. 

     Os representantes das cinco etnias que moram na área de influência direta daquela que pretende ser a segunda maior hidrelétrica do mundo (mas a maior inteiramente brasileira) aceitaram o prosseguimento das obras. Em troca, os construtores se comprometeram a cumprir o que o licenciamento ambiental já os obrigara a fazer, mas agora sob a fiscalização dos próprios índios.

     Eles também acompanharão um dos efeitos mais temidos do represamento do rio Xingu, às proximidades de Altamira, no Pará, já no seu curso médio: a falta de água a jusante, por onde se espalham algumas tribos. Elas sofreriam sede e fome em pelo menos três meses do ano, quando é maior a estiagem.

     Um dos compromissos assumidos no licenciamento ambiental pelo consórcio que venceu a concorrência pública de Belo Monte foi o de manter uma vazão mínima de 700 mil litros de água por segundo. É bem acima do nível registrado nos verões mais rigorosos, de 400 mil litros. Se for registrada vazão abaixo desse patamar. a Norte Energia pode ser punida e até perder a concessão — com ou sem a fiscalização indígena, formalizada agora em dois comitês gestores.

     Todas as reivindicações que os índios apregoaram ao ocupar o canteiro de obras Pimental foram atendidas, depois de dois dias de intensa negociação. Após a assinatura do termo de entendimento, eles se retiraram do local, ao qual retornaram os 2,5 mil operários que ali trabalhavam. A consolidação do acordo, que afasta o principal entrave para a continuidade dos serviços, vai depender da execução do que foi definido.

     O atraso, na verdade, será mínimo, quase imperceptível. E os pedidos dos índios poderão ser atendidos sem maior esforço porque já constavam do projeto. A rigor, a montanha pariu um rato. Muito barulho e confusão para pouco efeito real.

     A monumental hidrelétrica está sendo construída simultaneamente em cinco frentes. Todas trabalham em terreno seco, o que é uma raridade em grandes obras na Amazônia, possibilitando excepcional celeridade aos trabalhos, como em nenhum outro empreendimento similar na região.

     No local ocupado pelos índios surgirá o principal dos dois vertedouros do projeto, ao lado do qual será montada a casa de força complementar. A casa de força principal será erguida depois do segundo vertedouro, este não motorizado, 50 quilômetros rio abaixo em linha reta (140 kms pelo leito natural). É um desenho completamente original para os padrões das hidrelétricas. Nem todos atentaram para essa singularidade.

     O projeto rejeitado liminarmente pelos mesmos grupos indígenas em 1989 pouco tem a ver com o atual. Ele seguia a mesma concepção da hidrelétrica de Tucuruí e de outras grandes barragens. Tudo devia se concentrar na área que os índios ocuparam no dia 21 de junho. Se tivesse sido assim, a obra pararia por inteiro e os prejuízos teriam sido de grande monta.

     Para poder vencer (ou contornar) a resistência nacional ao aproveitamento hidrelétrico do vale do rio Xingu, que atravessa os territórios de Mato Grosso e Pará, numa das mais belas e complexas áreas do país, o governo cancelou cinco das seis barragens previstas nos inventários realizados a partir dos anos 1970. Restou Belo Monte.

     Ao invés de uma barragem, passaram a ser três. No ponto mais a montante já está em construção o vertedouro principal, que no início não seria motorizado. Na mais nova das versões (que parecem não ter fim), ele receberá oito turbinas do tipo bulbo.

     Elas são bem pequenas: sua capacidade é mais de 20 vezes menor do que a das gigantescas turbinas Francis, 18 das quais (e não mais 20, como estabelecia a penúltima versão do projeto) ficarão na casa de força principal.

     As turbinas bulbo funcionam com pouca água e com água em baixa queda (basta um desnível de 12 metros, contra 90 metros das turbinas convencionais). Não precisam de acumulação de água num reservatório. São — como dizem os engenheiros — a fio d'água, com baixíssimo impacto ambiental.

     Os 233 megawatts que essas oito máquinas irão gerar, a partir de 2015, representam 40% do que produz uma única das 18 turbinas convencionais da outra casa de força. No conjunto, estas é que respondem pelos 12 mil MW potenciais de Belo Monte. Energia que será transferida quase integralmente para o sul do Brasil. O consumo local podia ser atendido apenas com as máquinas do Pimental.

     Antes de chegarem a esse reservatório, as águas do Xingu (que podem atingir vazão de 19 milhões de litros por segundo) serão desviadas do seu curso natural. Por 50 quilômetros de extensão, elas descerão 90 metros através de canais artificiais de concreto, também já em construção, na maior obra desse tipo em todo mundo.
     Uma intrincada rede de canais conduzirá a água a um reservatório criado fora da calha do rio, que, passando por um novo vertedouro, chegará à tomada de água da casa de força principal. Suas máquinas precisam de 10 milhões de litros por segundo para serem capazes de gerar conforme sua capacidade instalada. 
     Essa plenitude só será atingida nos meses mais chuvosos do ano, que não serão mais do que sete ou oito. Por isso a energia firme, aquela disponível durante o ano todo, cai para 4,3 mil MW, bem abaixo do que seria a média econômica, de 5,5 mil MW. Ainda assim, os projetistas de Belo Monte garantem que ela será rentável e que, sozinha, irá assegurar 8% da demanda nacional, através de uma matriz renovável e limpa.

     Respondendo aos críticos e se ajustando aos novos padrões de exigência, o complexo hidrelétrico do Xingu representa, ao pé da letra, o que diz o seu título. É a obra mais complicada que já se concebeu e se realiza no Brasil no setor de energia. De tantas emendas e correções, adquiriu um perfil inteiramente novo, que pode ser visto como algo monstruoso (um Frankenstein hidrelétrico) ou primoroso, conforme o modo de vê-lo.

     É claro que essa vasta complexidade na abordagem de um rio não esteve posta na mesa de negociação com as lideranças indígenas. Mas estará de volta às planilhas da obra em acelerado andamento. De tal maneira que talvez só com o fato consumado se venha a saber ao certo que criatura surgiu da prancheta dos engenheiros.

Por Lúcio Flávio Pinto 'in' Cartas da Amazônia

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